A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) tem como objetivo prestar assistência permanente a pacientes em estado clínico grave. Apresenta características ambientais específicas, que expõem o paciente e seus familiares a sentimentos de angústia e ansiedade que permearão todas as relações. Acompanhar um familiar na UTI pode ser vivenciado como evento estressor e a forma que as pessoas encontram para enfrentá-lo é chamada de “coping”.
Nesse sentido, o objetivo desta pesquisa foi avaliar as estratégias de enfrentamento (“coping”) dos familiares de pacientes internados na UTI Clínica e na Unidade Coronariana (UCO) do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor/HC-FMUSP), no período de julho a setembro de 2004.
Participaram da pesquisa 50 familiares de pacientes internados na UTI Clínica e na UCO. O instrumento utilizado para realizar essa avaliação foi o Inventário de Estratégias de “Coping”, idealizado por Folkman e Lazarus, em 1985, e adaptado por Savóia e colaboradores, em 1996. Nos resultados, observou-se que os familiares utilizaram todas as estratégias em diferentes graus de intensidade. Reavaliação positiva (94%), suporte social (88%) e resolução de problemas (84%) foram as estratégias mais utilizadas, seguidas de autocontrole (78%), fuga-esquiva (78%), aceitação de responsabilidade (54%), confronto (32%) e afastamento (30%). Concluiu-se que a utilização de reavaliação positiva, suporte social e resolução de problemas pode expressar grande envolvimento desses familiares com a internação de um dos membros de suas famílias. Em um primeiro momento, os sujeitos dessa amostra recorreram ao suporte social como forma de buscar compreensão e de compartilhar as angústias e cuidados de outras pessoas para consigo, visando ao bem-estar emocional. Em outro momento, buscaram soluções para a situação de forma a recorrer a aspectos positivos da situação. A não utilização de confronto e afastamento também pode ser ressaltada, na medida em que, nesses casos, os familiares se envolveram com o problema, não se afastaram e nem negaram o processo em que se encontravam.
Jennifer De França Oliveira
Cintia Emi Watanabe
Bellkiss Wilma Romano
Artigo Publicado na Revista da Socesp.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2007;3 Supl A:4-9)
RSCESP (72594)-1656
Introdução
A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) surgiu na década de 1960 e destinava-se ao tratamento ininterrupto, especializado e individualizado a pacientes com risco de vida [text_styles type=”superscript”]1[/text_styles], ou seja, à assistência de saúde para pacientes agudos e/ou crônicos com possibilidade de recuperação.
As UTIs possuem algumas características ambientais específicas [text_styles type=”superscript”]2[/text_styles], que expõem o paciente e seus familiares a sentimentos de angústia e ansiedade, que permearão todas as relações [text_styles type=”superscript”]3, 4[/text_styles].
A família, segundo Romano [text_styles type=”superscript”]5[/text_styles], é um sistema intercomunicante, e se faz necessário conhecer o sistema grupal e o ambiente nos quais o indivíduo está inserido para compreendê-lo. A função dessa família é fornecer alimento afetivo para manter a homeostasia psíquica de seus demais componentes, princípio esse fundamental para a manutenção do equilíbrio familiar[text_styles type=”superscript”]6[/text_styles].
A hospitalização de um de seus membros pode ser percebida como um evento estressor[text_styles type=”superscript”]5[/text_styles], já que o “estresse psicológico é uma reação particular entre a pessoa e o ambiente, que é avaliada por ela como sobrecarregando ou excedendo seus recursos e colocando em risco seu bem-estar”[text_styles type=”superscript”]7[/text_styles]. Percebida dessa maneira, a hospitalização pode gerar desorganização do núcleo familiar, exigindo adaptação da família. A forma como os indivíduos dessa família, ou qualquer outro, enfrentam esse evento estressor é chamada de “coping”.
“Coping”, então, são os esforços cognitivos e comportamentais mobilizados com o objetivo de lidar com demandas internas ou externas, que surgem em situação de estresse[text_styles type=”superscript”]7[/text_styles].
Objetivo
Avaliar a prevalência e a qualidade das estratégias de enfrentamento (“coping”) em familiares de pacientes internados em UTI e Unidade Coronariana (UCO) de hospital especializado.
Material e Métodos
Participaram deste estudo 50 familiares de pacientes internados em UTI e UCO do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor/HC-FMUSP), durante 40 dias, por acessibilidade. Foram critérios de inclusão: ser maior de 18 anos e ser familiar de paciente internado em UTI ou UCO do InCor. Foram excluídos os familiares portadores de doença degenerativa ou qualquer tipo de doença ou transtorno mental, que os incapacitassem de compreender as questões.
Pouco mais da metade da casuística (58%) foi composta por filhos e 20% (n = 10), por cônjuges.
Grande parte dos familiares (88%) nunca tinha sido atendida pelo Serviço de Psicologia do InCor previamente e 90% não estavam sendo atendidos no momento da pesquisa.
Como instrumento, foi utilizado o Inventário de Estratégias de “Coping”, idealizado por Folkman e Lazarus, em 1985, e adaptado para o português por Savóia e colaboradores[text_styles type=”superscript”]8[/text_styles]. Esse inventário contém 66 itens, divididos em oito fatores: confronto, afastamento, autocontrole, suporte social, aceitação de responsabilidade, fuga-esquiva, resolução de problemas, e reavaliação positiva[text_styles type=”superscript”]9[/text_styles].
O instrumento foi aplicado durante ou logo após o horário de visita das unidades, depois da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Para identificar as estratégias de enfrentamento mais utilizadas, foi efetuada a soma do número de participantes que usaram essas estratégias algumas vezes, grande parte das vezes e quase sempre, já que o inventário apresenta quatro categorias de resposta: não utiliza ou utiliza pouco; utiliza algumas vezes; utiliza grande parte das vezes; e utiliza quase sempre.
Os resultados desta pesquisa demonstraram que os familiares utilizaram predominantemente três estratégias: a reavaliação positiva (94%), reportada por 47 familiares; o suporte social, reportado por 44 familiares (88%); e a resolução de problemas, reportada por 42 familiares (84%). Ao relatar a forma como vivenciam o adoecer repentino e crítico de um familiar, recorreram a todas as estratégias em diferentes graus de intensidade, ou seja, utilizaram todas as estratégias, como pode ser observado na Tabela 1, porém algumas foram utilizadas por quase todos os familiares e outras, por menos da metade.
Estratégia | n | % |
---|---|---|
Reavaliação positiva | 47 | 94 |
Suporte Social | 44 | 88 |
Resolução de problema | 42 | 84 |
Autocontrole | 39 | 78 |
Fuga-esquiva | 39 | 78 |
Aceitação de responsabilidade | 27 | 54 |
Confronto | 16 | 32 |
Afastamento | 15 | 30 |
n = número de familiares |
Discussão
A reavaliação positiva foi apontada como sendo utilizada algumas vezes por pouco mais da metade dos familiares (58%), e em grande quantidade por 36% deles. Isso demonstra que acompanhar uma internação em UTI faz com que o indivíduo tente reestruturar o que aconteceu de forma a buscar, por meio dos aspectos positivos, resolver a questão ou diminuir a carga afetiva direcionada à situação.
A literatura[text_styles type=”superscript”]10-13[/text_styles] aponta que utilizar essa estratégia é buscar a reorganização interna do acontecimento, com o intuito de encontrar alguns aspectos que mais a favoreçam. Procuram pensar em soluções, com a intenção de amenizar a gravidade e concentrar-se nos aspectos positivos da situação, como forma de amenizar a carga emotiva do acontecimento, buscando alterar a mesma.
Para vivenciar essa situação de estresse e tensão com grande responsabilidade, os familiares desta pesquisa apoiaram-se no suporte social, que foi utilizado algumas vezes por 34% e grande parte das vezes ou quase sempre por 54% dos familiares.
Uma das características que potencializam a capacidade de enfrentar adversidades, ou seja, apresentar resiliência, é a possibilidade de se contar com o suporte social, que corresponde a qualquer informação, auxílio material ou afetivo oferecido por grupos ou pessoas. Nesse sentido, define-se como relação humana a troca de recursos
socioemocionais, instrumentais ou recreativos. As redes de suporte social são pessoas, grupos ou instituições concretamente organizados e que potencialmente podem exercer esse apoio[text_styles type=”superscript”]14[/text_styles].
Nesta pesquisa, foi observada a busca incessante pela resolução de problemas por parte dos familiares, que passam a refletir e a agir em busca de planos e alternativas, com o intuito de solucionar a situação e de tentar diminuir a carga emocional direcionada à situação. Essa estratégia foi utilizada algumas vezes por 24%, grande parte das vezes por 46% e quase sempre por 14% desses familiares.
A utilização dessa estratégia está ligada à reavaliação positiva, pois esses familiares, ao buscarem soluções para a situação, procuram formas positivas de resolver o problema. Contudo, na tentativa de buscar soluções, utilizam bastante a religiosidade e a fantasia, consideradas formas distantes da realidade prática e objetiva para conseguir que algo concreto aconteça na internação[text_styles type=”superscript”]15[/text_styles].
O autocontrole, utilizado algumas vezes por 48% e grande parte das vezes ou quase sempre por 30% dos familiares, bem como a utilização da fuga-esquiva algumas vezes por 40% e grande parte das vezes ou quase sempre por 38% dos familiares, ressaltam a dificuldade em vivenciar esse situação.
Os familiares, por estarem vivenciando uma situação de grande estresse, experienciam sentimentos e emoções muitas vezes ambíguos. Por sentirem a necessidade de transmitir aspectos positivos ao paciente, para favorecer sua melhora, tendem a controlar suas emoções, para que possam buscar soluções para a situação.
Embora tenha sido bastante utilizada, a maioria dos familiares não adotou a estratégia da fuga-esquiva.
Pode-se pensar que a utilização da fuga por meio da fantasia pode estar relacionada à complexidade de se estar numa UTI. Muitas pessoas sentem dificuldade em se defrontar com a morte ou com a possibilidade dela, porém observou-se que os que não utilizaram a estratégia poderiam estar em um outro momento de vida ou se sentirem responsáveis pelo acometido ao paciente.
A utilização da aceitação de responsabilidade por pouco mais da metade da amostra (54%) algumas vezes ou grande parte das vezes pode evidenciar sentimento de culpa e responsabilização pelo adoecer repentino e/ou grave de seu familiar.
Pode ser vivida como um perceber-se responsável pelo problema e conformar-se com a situação. Isso não foi observado em outras pesquisas[text_styles type=”superscript”]4, 16, 17[/text_styles], nas quais os familiares se isentavam da responsabilidade de se aceitar como sujeitos desencadeantes da situação, não se criticando ou se culpando pela internação do familiar.
No presente estudo, observou-se que as famílias não se confrontaram com a situação de internação de um de seus membros, pois 68% pouco ou não a utilizaram. Resultados semelhantes foram encontrados em outros estudos[text_styles type=”superscript”]16, 17[/text_styles].
O não se confrontar com a situação pode significar a utilização de atitudes desafiadoras, impulsivas ou agressivas, talvez como forma de tentar superar a situação. É possível que a dificuldade em se confrontar com tal situação esteja relacionada ao acompanhamento de um familiar em UTI com problema no coração, acrescido do simbolismo que esse órgão carrega, trazendo uma carga emocional muito grande a esse familiar.
Neste estudo, 70% pouco ou não utilizaram o afastamento, significando que os familiares não negaram ou recusaram ter contato com o fato desestruturante. Resultados semelhantes foram encontrados no estudo de Faria[text_styles type=”superscript”]17[/text_styles].
Conclusão
A pesquisa permitiu concluir que, nesta amostra, as formas de enfrentamento mais utilizadas pelos familiares de pacientes internados na UTI Clínica e na UCO foram a reavaliação positiva, o suporte social e a resolução de problemas.
Essa utilização pode significar grande participação e envolvimento desses indivíduos na internação de seu familiar. Em um primeiro momento, no qual a instabilidade do paciente ainda traz grande tensão, esses familiares recorrem ao suporte social como forma de buscar compreensão, atenção, divisão de suas angústias e cuidados de outras pessoas para consigo, com o objetivo de estabelecer bem-estar emocional.
O envolvimento demonstra a busca por soluções para a situação de forma a recorrer a aspectos positivos da situação. Na maioria dos casos, famílias que consideram estar apoiando seu familiar internado acabam tratando-o como incapaz ou inválido, ou seja, tomam as decisões por ele ou escondem sua real situação clínica, por temerem que sua decisão possa ser diferente da que gostariam. No entanto, encontram-se famílias que apóiam realmente o paciente, estando incondicionalmente a seu lado para fazer valer seus desejos, viver com ele as dificuldades desse momento e manterem-se em família.